"é uma pontada cada vez que respiro. Às vezes aspiro fundo e encho os pulmões de um ar i n s u p o r t á v e l, para ter alguns segundos de conforto, expelindo a dor. Mas bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi atroz. E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida."
(Leite Derramado - Chico Buarque)
Há belezas incofessas
cujo recato não permite a doçura de uma carícia...mesmo leve
o esconder das formas a tudo provoca
e o mostrar insensível aos olhos torna
E há belezas a olhos nus
Incontestáveis
tais quais as leis das exatas
que excita os olhos
eriça a pele
e depois a vista desloca
pois nessa vida
há outras conquistas
outras procuras infinitas
e havia também os meus olhos perplexos...
essas confusas órbitas
à procura de incógnitas
sem foco
de quem anseia conhecer o mundo
mas nulo de conhecimento esbarra em tudo
e só fica mais confuso
cedo na vida fui senhor de "Me-perdi"
esse reino tao miserável quanto exílado
pois nada lá é de si conectado
há Franksteins desvairados
em que nada se encaixa
o monstro sem memória
que apenas sobre a vida resvala
e vivia por isso ressentido, melancólico e facilmente presumido
nem eu mesmo de mim era digno
porque não me investiguei a fundo
não me fiz de mim intimo
por isso, cedo, vivenciei meu próprio luto
E por fim, nunca me fui soberano
é que havia outros planos...
fortuitos encontros
amigos-enganos
paixões de pano
bonecas de falso porcelano
tantos humanos
tantas artes
por vezes, agradáveis paisagens
tantas fraudes
fraudas geriátricas e infantes palhaçadas
tantos fatos facilmente corroborados
mas de insistir no erro me via obrigado
tantos artefatos
e aquelas velhas piadas
que a gente só ri porque sabe onde vai dá
e a platéia ali esta porque quer se entusiasmar
o fastio da monotonia cansa e desilude
a minha vida que é apenas vazia
mas sorriso mesmo desiludido é melhor que o choro rude
seus crochés mal acabados
e suas doenças mal curadas
as velhinhas tão estúpidas
que nas suas velhas crenças roubam minha paciência
mas não quero parecer rude
entao sorrio complacente
mostro os amarelos dentes
e dentre essas tantas descobertas descritas em longos pergaminhos
tantos burburinhos
entre essas tantas velharias e bungigangas
havia curiosidades tantas
e tempo pra mim não havia
é que ja não me aguentava a anos
há tempos distração vinha procurando
qualquer coisa que me ecalentasse o peito
a vida pra mim se deu de modo contrário
de menino fui senhor triste a acabrunhado
de senhor maduro, sou menino desvairado
me perdi pelas paixões a que nao soube a nenhuma me ater
é que havia amores às tantas e
às tontas
por pessoa qualquer
que eu pensara ser amor de jeito,
sabe, "um amor de respeito"? Como diz o cabra matuto
Amor pra me acompanhar ao derradeiro leito
foi coisa que busquei na esteira da viagem
mas sem nunca me prender por inteiro
foi esse meu fácil seduzir-se
que me fazia assim
o coração senhor de mim
e menino de coração
que nunca soube a quantas despedidas estava predestinado esse coração
cedo descobri que não sabia o que fazer de mim
me pus a escrever
procurando salvação
busquei na poesia
essa solitária menina
à janela, triste e feia
e de investigar-lhe a natureza
vi a grande mentira que era
"só escreve quem vive ou quem à vida contempla e lapida"
matéria para escrever tem mesmo é o poeta que tem fome de vida
não escreve quem amou
ou quem viu amantes se enlaçarem na luz de uma candeia
escreve quem tem fome de amor
assim era eu
pedinte
doente
insone
faminto
perdido
que cobiço e imagino
a serenidade da saúde
a tosse antiga me perturba
o prazer insondável do sono
me incomoda a sensação de fartura
é na penumbra desse quarto
que anseio a liberdade
e lhe dou aquele vigor ao proclamá-la ainda que tarde
havia viagens
muitas paisagens
propostas insondáveis
e os desejos a trespassar o peito
mas entre tantos de amor-desejo
haveria o singular?
o que iria ficar?
a constância incansável?
o não fatigar no olhar...
haveria mesmo aquela a quem depois do sexo eu não iria querer pro outro lado virar?
mas o que o mundo moderno
pode entender das dores de um velho?
aqui dentro arde
e nao mais a tosse acostumada ao peito
a avisar meu fim suspeito
são as cólicas de uma vontade
ai o mundo moderno!...
e esse velho quase sem peito
a se queixar ao psicólogo
a pagar-lhe de consulta duas horas
e relatar os projetos que nunca deram certo
quanto mais eu vivo mais ultrapassado de mim me fico
que nem em mim me acho mais
é que pra esse navio não houve cais
nem mesmo alguém com quem fosse plena a conversa
vai haver sempre uma palavra,um novo eletrodoméstico e até um sentimento
que eu não conheço
que não entendo
é que o ouvido, esse amigo desatento
também foi ficando velho
acostumado aos vãos e a ouvir o silencio
é de tão antigos que os móveis da casa vao sendo substituidos
por uns ocos de madeira compensada
eu madeira de lei, me jogaram no canto embaixo da escada
empoeirado
e calado pra poder dormi sossegado
e nao incomodar com meu rude palavreado
às visitas que acabaram de chegar
menino, não te atormentes
que a explicação da vida nao se dá num dia
nem numa sala de aula vazia
nem muito menos na poesia
senta ai meu velho, que a fila dos remédios é também velha
e te faz ver que a vida não é assim tao breve
e o conforto da sala de espera é lêdo engano
pois ela está vazia
e so algumas revistas velhas não te acalentam a solidão que também é velha
as imagens coloridas e a sacadas dos jornalistas
a preencher espaços vazios
mas faz parte da decoração...as revistas, não o velho
Poeta, cala esse peito
nao há motivo pra tanto desassossego
tuas palavras não comovem as gentes
não desfazem enganos feitos
é nesse canto escuro junto ao piano
que levanta as asas mas não abana
isolado de tudo
nunca saberá o que é tocar o mundo
então fica com a palavra
essa mulher desvairada
que da vida não sabe nada
que tá na feira falando asneira
e pensa que é mulher sábia
Sobrou só o meu velho ato sondar o mundo
e os meus olhos perplexos, lembram deles?
Esses gatos lépidos a procura de um rolo de linha...frívolos
esse bichos em vidros histéreis
a roçar-se em minhas pernas
e a olhar tudo de olhos assustados..atentos
como se fosse a primeira vez
a prever alguma história, quem sabe mais bela.