À Hilda Hilst, à sua obscena Senhora D e a Dom Casmurro (que sempre me inspira) e às duas primeiras, que me inspiraram hoje esse poema exasperado, como a velha debaixo do vão da escada, no luto por seu amado e o velho sozinho na casa, de capitu rememorando seus olhos de ressaca.
-Um vazio incurável
um cego nó
uma reviravolta no estômago
um viajante só...
- mas como? você não ama mais?
- sinto que não mais...
ou “não mais” com a mesma intensidade
é um quase nada...
(um “ai” sem vontade,
que não se sustenta,
que não se sustenta,
que não desperta dó
nem mesmo em quem me acalenta)
-ah!
- frágil demais...
- cara, que bom viu!
- não é bom NÃO!
porque eu só esqueci aquele amor
porque eu só esqueci aquele amor
com amores vazios
e o que eu sentia era tão lindo
não merecia esse fim
- ah...entendi...
pode ser...
mas o importante é que VOCÊ
saiu daquele estado!
- e de que adianta eu corroborar esse fato?
se até por esquecer me tornei inconsolável?
e, se estado pior de mim se aproxima?
- porque tu diz isso, o que ta acontecendo contigo?
- é porque eu não tenho jeito de amar a mais ninguém...
- onde tu ta?
- eu to no limbo...
- onde??
-sozinho.
onde?
-aqui...
DESLIGO o telefone...
não dou pelo meu amigo
quero ficar nessa euforia caótica
pedir uma vodka pro cara do bar
sentar e chorar
a dor que eu já não tenho
que me desfaz ao meio
por eu não ter mais o que dá.
A fragilidade do tempo
me impediu de viver esse amor ao extremo
como quando é interrompido o fluxo de um córrego
mas não tenho nem mesmo ódio
rancor, desilusão,
só tenho uma dor
que já não é dor,
é que passou...
e eu não sei que nome dá ao que, sem amor, não é dor...
febre sem causa maior
ave sem asa
e eu só!
com o farrapo da minha dor
um cinza turvo
um amarelo ovo
tinta sem cor
e pensar que um dia o meu mundo
a tua presença mágica tanto afetou
era capaz de,
sem ser pintor,
fazer-te aquarela
e do teu corpo bonito (nu)
pintar-te até as veias
desnudar-te em uma tela
pois fazias parte do meu mundo mais alucinatório
os teus traços
nunca óbvios
nunca óbvios
eram mosaico fluido
a variar de cores
só tu inspiraste poesia
fostes festa
nessa sala, hoje vazia...
E desde que estive contigo naquela noite fria
desde que rodei o prédio
subi andares
e tantas vezes desci...
e subi escadas
como náufrago
e subi escadas
como náufrago
suspenso nos (m) ares
que vinham de ti
afetaste minha vida
como afeta um elétron uma carga de energia
o chão presenciou minha destruição
me entreguei à suja ferida
como bom canino
lambi, ela supurou
até que um dia
O distraído cão de tanto lamber a ferida
ela cicatrizou
e eu fui ter contigo
no vazio que restou
eu parecia um bêbado a variar no becos
uma criança cega a procurar brinquedos
um poeta insone a mastigar a dor
Picasso e seu mundo azul
pólen de roseira no deserto do Atacama
que de procurar plantação fértil
gruda na lama
buscava-te a boca
carnuda a saciar-me a sede
carnuda a saciar-me a sede
mas de agruras vividas
só encontrava seca
não, você não sabe...
andei por mil lugares a te procurar
mas descobri no fardo exausto do caminho
que exasperante estive
a procurar a mim.
Hoje calmo e taciturno
nesse leito frio
Finalmente
comigo me encontro...só, triste e velho
nem mesmo a brisa do alpendre acalenta o peito
comigo me encontro...só, triste e velho
nem mesmo a brisa do alpendre acalenta o peito
Mais tarde, pálido,
no abandono do meu quarto
no abandono do meu quarto
torno a ver-te o retrato
e vou ter contigo, sob nosso recato
rememoro nosso amor antigo
não sem falhas, é claro
A memória
essa amiga pouco sóbria
Me visita por horas e horas
A memória
essa amiga pouco sóbria
Me visita por horas e horas
o tempo, inimigo, não me consola
abro o armário, avisto tua camisola
tu me convidaste a ela
nas nossas nupcias
de ti, nao posso me curar
vou aos remédios,
que dizem ser paleativos
minha amargura,
como o algoz que feroz castiga a fera
é tão indelevel
que a tenho aqui comigo
mas disfarço bem...
como o algoz que feroz castiga a fera
é tão indelevel
que a tenho aqui comigo
mas disfarço bem...
Vou recolher-me
que a hora já é tarde
e o dia já aurora
e me principia a morte
e me principia a morte
de amor, me sinto vazio
mas de ti, repleto
amada minha.