Te busquei nos vãos dessa cidade morta
mas jamais tive coragem de bater à tua porta...
tu estavas lá
eu bem sabia, à minha espera
mas foi mais fácil transformar-te numa quimera...
o estremecimento era tanto,
quando defronte tua presença me alcançava
que de longe,
por mais distraído que estivesse e que estava
teus passos a mim te anunciavam
tal qual sino de igreja
chama os fieis a uma prece
tal qual executivo às pressas
esquece papeis avulsos sobre a mesa
tal qual o vento perpetua uma vela acesa
eu, que de ti estava repleto
emudecia!
pois tua glacialidade
com poucas palavras
me aniquilava
como uma casa habitada por anos
hoje, vazia....
longe de ti, contudo, eu me sabia salvo
da desmesura da paixão
porque tempo e tempo de ti exilado
me acalmaria o que um dia
foi arrebatamento e coração.
busquei em parentes distantes
em longas ausências
sentidas antes...
muito antes que tua chegada fosse pressentida
mas que me prepararam pela recorrência do meu desejo
feito uma cena
mil vezes ensaiada
mas que só por ti
(atriz do meu louco mundo)
e assim sendo, desvairada
Só por ti (a cena)
cabia ser encenada
busquei em ti respostas de antigos questionamentos
como a humanidade, de Deus, se questiona a tanto tempo
respostas que confusas não sabiam se confirmar
(outras elaboradas, mas só palavras não sabiam se explicar)
e tive que romper com a bobagem de ter escrúpulos
com meus ideais de amor, que eram puros
eu por tantas, pra ti me fiz de surdo
é que tua imagem...ao contemplar-te
me dizia tudo
rudes perguntas!
sem respostas me afrontavam
mas se saiam da tua boca
feito do mar vem fácil a espuma
era o trabalhador que ao fim do dia
rompe fácil a desgastante labuta
a inclemência das horas
perfilava minha agonia
mas sentado ao sofá
eu brindava tua existência (que um dia)
enchera de vida outrora
essa sala, hoje, vazia
cansado do exaspero da sala
da euforia que me lembrava as festas
que tu alegremente fazias
como lembra o saudoso mar a recorrência de uma vaga
fui ao jardim
colher flores que reunissem odor e beleza
mas a contradição da flor não a permite eterna
em sua efêmera natureza
(nem complacente)
num jarro sobre a mesa
aos que a desejam e tocam nela
é verdade que a torna mais bela
( em seu vigor)
a brevidade da flor
mas inclemente a quem de contemplá-la
não se contente
Saí ferido!
e a ninguém pude recorrer
as mãos sangradas por um espinho qualquer
que na minha pele se fez feroz
calmo,
consciente de seu poder
contudo atroz
e sob o sol eu dancei
atônito de tua luz
Meus passos
pareciam por ti guiados
impressão...eram canteiros
que estúpidos me guiavam pelo jardim dos pesadelos
voltei à casa, decidido a exorcizar-te
a recolher-me do cansaço do naufrágio...
e dos pedidos aos céus nunca alcançados
dos parentes que só sabem meus
porque os laços de sangue os fazem reconhecer os seus
das festas que à casa tu proporcionavas
eu poderia ter contigo dançado
e das manhãs em que regavas nosso jardim
eu poderia...
mas me contentava a admirar-te
tanto que não fiz
que te perdi...
o cansaço dos teus pedidos de vida já me cansavam
eu não poderia dar o que não tinha: vida!
coisa tão rara, que até hoje só achei em ti
a minha é hoje essa casa vazia
fui deus inclemente
não ouvi tua prece paciente
de surdo tão me fiz
que um dia quando quis ouvir-te
só me encontrava na casa vazia
da sacada
quase que ouvia tuas pisadas
os anos de convivência
encheram a mim e à casa de tua presença
só sei que te queria
não importando se sagrado ou sacrílego
ah, eu te sabia flor dos meus dias
mesmo, as mais agrestes...
quem desmereceu os ramos silvestres?
que ao contrario das flores de jardim
estão livres da peste
de natureza selvagem
a engendrar-se por bosques e campos
de vastos quilômetros
Tu foste assim
essa breve passagem
como uma brisa a tocar de leve
essa pele tão marcada
Ou uma lépida bailarina a dançar de uma ponta a outra da sala
leve mas marcante em seus passos ensaiados
Me permitiu voltar a ser criança
a ter os mesmos sentimentos que tive na infância
atento na tua dança
Tanto virei menino
Que meu relicário a ti
foi a primeira página do caderno
e um desenho bem bonito
a brindar tua existência tão bela
Algum moleque traquino
puxou o adesivo
e deixou o desenho desbotado no papel
que descolado
seco
amareleceu
encarquilhou-se
E só sobrou eu.
"Sobre estar só, eu sei nos mares por onde andei."
*Dois barcos - Los Hermanos