"E quantas vezes, amor já te esqueci, para mais doidamente me lembrar, mais doidamente lembrar de ti, e quem me dera fosse sempre assim, quanto menos quisesse recordar, mais a saudade andasse presa a mim"
Florbela Espanca
Agora que já passou, vem-me com mais clareza, quase de forma jornalística de tão imediata, pois não há um turbilhão de sentimentos que se embaralhe com as palavras e as faça vacilar dentro de mim. Pelo contrário, as palavras vêm fácil, quase que ressequidas pelo tempo, pelo amadurecimento ou desfeito do sentimento.
E é bom contar uma história limpa, mesmo que ela não emocione quem a escuta, (e desde quando é preciso emocionar como prova da verdade?) torna-se necessário o relato dessa experiência, que já começa a me inquietar, mesmo que de forma inofensiva, por superficial curiosidade.
O não vivido estará morto? E o que foi vivido, como está? E o que se vive, não está na iminência da morte?
O tempo é uma violência, mesmo à mais fabulosa experiência. Torna tudo pequeno e os mais sublimes significados são perdidos. Não há prisão que impeça a renovação de um fluido que me trespassa constantemente o corpo.
A única forma de apreender o que vivi, por mais frágil que seja, é por meio do registro, que a minha rica experiência já habita em um mundo em que eu fecho os olhos para ver se a reencontro.
Vamos ver até que ponto eu me desvencilhei ou não do meu caso...
A essa altura, eu usava uma indumentária bizarra chamada farda escolar e passava pela rua do colégio quase que percebendo um jovem que se trajava da mesma forma. Ele usava óculos de grau, um objeto que nunca estivera nos meus olhos e ele era alto, aspecto com qual o meu corpo não contava, ou seja, ele era mais um estranho que habitava um universo bem distinto do meu, já que eu estava desprovida de óculos e de altura, mas andava pelos mesmos caminhos que ele. A inevitabilidade do encontro...
Eu não devia colocar tantas espectativas no leitor, mas desculpem-me ser uma narradora leviana.
Li muitos autores crueis e vou colocá-los diante de um anticlímax para fazê-los tão infelizes quanto eu nessa história.
Há uma lacuna aqui que outro texto poderá preencher mais adiante, já que nesse momento, a parte romântica da história não me é mais interessante, assim, posso resumi-la em três frases:
Fomos colocados na mesma sala de aula, no 3º ano do ensino médio, em que nos simpatizamos e nos tornamos bons amigos.
Flertávamos, sorríamos e tínhamos um carinho de muitos abraços e de poucas palavras.
Ele escolheu outra menina e com ela ficou. (por algum tempo)
É, as duas primeiras proposições são incoerentes com a terceira. É a vida e suas surpresas.
E eu contava com uma rotina diária no colégio, que terceiro ano não brinca, com os vãos da escada, com aparições inapropriadas deles de mãos dadas, com uma amiga confidente e a minha angústia diária.
Não fosse o apelo insistente e quase vulgar com que a outra jovem contou, e ele não fosse bobo, ah, os garotos são muito bobos, teríamos tido nossa chance. Confesso que fui fraca, não sou boa competidora quando se trata de triangulos amorosos e com 17 anos, eu não contava com grandes armas de sedução. A paixão me recolheu e eu fiquei num canto da sala, olhando eles dois juntos até o fim do ano.
Superei o fato, não sem alguma dificuldade, é claro, mas vivi outras experiências e já era uma aluna universitária e bem...na universidade...
Fato que não voltaria, fiz questão de esquecer aquelas lembranças constrangedoras do ensino médio, tão trágicas nessa idade e hoje, veja só...
Não fossem as infames redes sociais...
Se eu tivesse nascido na Idade Média pelo menos, estaria protegida pelas muralhas fortificadas do meu feudo e livre de invasões tão rídiculas como aquela e o esquecimento não teria sido rompido, porque ele me encontrou no orkut, desgraçado!
Meu cérebro tanto fez questão de apagar tudo que, quando vi seu nome e sua foto, nada me disse, mesmo ele usando a infame frase que amante de uma noite usa ao reencontrar seu homem: "você lembra de mim?" Eu olhava sua foto de perfil, a frase e o seu nome e não lembrava dele! Cheguei a cogitar a hipótese de que nunca havia, de fato, gostado.
A resposta veio seca e abusada como ele merecia: "não, não guardo todo mundo que passa por mim , só alguns relevantes."
Ele não se intimidou, me arrependi da grosseria mais tarde, bastou meu cerébro acessar seu doce nome na sua imagem e até a frase de amante de uma noite e a minha tragédia adolescente foram esquecidas naquele instante. Ora, mas porque tanta benevolência?
Forçando uma indiferença, tentei não dar importância ao fato.
Mas fui tomada por um sorriso que sem permissão invadiu meu rosto e um sobressalto na cadeira diante do computador e se no meu país não havia terremoto, devia ser meu coração me avisando sem nenhuma delicadeza que eu ainda era uma tola colegial apaixonada pelos seus óculos e sua altura, dentre outros atributos, mas como não posso ceder a pieguice...
Como narradora moderna que sou, não preciso preencher todas as lacunas do texto, pois suponho que meu leitor seja mais perspicaz que eu e deve ser, pois há de estar zombando de mim a essa altura da narrativa e certamente, ao contrário de mim, teria ignorado o tal recadinho do orkut se ele não tivesse sido seguido por um cortejo prolongado e por um poema:
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que estão a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer o que sente
Fica sem alma, nem fala,
Fica só, inteiramente!
Cinco anos depois, não há vestígio dessa história. Eu superei a colegial, superei também a universitária e é claro que cresci alguns centímetros. Coisa de gente adulta, e como adulta, adoro uma boa leitura pela manhã e esta manhã, sem precedente algum, sem lembrança alguma do meu amor de colégio, havia um livro, mais escondido que os outros, que estava para ser lido há mais de um mês e não fora, então aleatoriamente peguei o dito livro, de Fernando Pessoa, chamado "O menino de sua mãe" e minha expectativa já não era romântica, era de encontrar fatos da infância do autor que eu muito aprecio. Mas o que será o amor, senão uma eterna infãncia?
A forma relapsa e banal com que peguei no livro, só podia me aniquilar com um excesso de significado que Fernando Pessoa jogou na minha cara com total deselegância com o mesmo poema mandado pela minha paixão de colégio, acreditem!
Fiquei aterrorizada e sentindo a teoria da conspiração atuando contra mim naquele instante, afinal alguma cumplicidade Fernando Pessoa deve ter tido com aquele rapaz, já que ambos usavam óculos...e sempre apelam pro mesmo poema.
Mas talvez seja porque um verso que começa com a palavra amor atrai até a mais cética das criaturas, imagine eu! O amor, mesmo pela mais tola sugestão, desperta grande curiosidade. E como curiosa assumida, eu tive curiosidade e medo, mas enfrentei e reli cada verso reconhecendo, sem acreditar...tocando as palavras. A sensação da leitura foi como o novo, o intocado. É certo que não havia mais paixão, mas eu reconhecia as palavras e me aninhava nelas pela agradável lembrança do cortejo...mesmo atrasado como foi.
Não há estudante do ensino médio ou universitária que resista quando o amado recorre com tanta entrega a Fernando Pessoa e não há mulher que resista quando Fernando Pessoa recorre ao poema com que um dia seu amado lhe presenteou!
Assim, eu também o presentiei com uma crônica chamada
O crucifixo no qual, pela primeira vez, consegui contar o meu caso, de forma menos cínica que agora e mais singela, e com o qual presenteio também meu leitor, caso queira ter algumas lacunas preenchidas, pois ninguém merece a angústia da dúvida, pois só a vivência pode nos serenizar.
Insisto no Feudalismo, pois senão fosse o Capitalismo e as redes sociais, eu teria esquecido a mais tempo ainda, esse mesmo tempo que continua brincando...