Aprendendo a ser

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Fá-lo-ei por eles e por outros que me confiaram as suas vidas, dizendo: toma, escreve, para que o vento não o apague.

9 de dezembro de 2008

O Crucifixo

Era algo exagerante, mas não esqueças que era a emoção do primeiro amor
Machado de Assis
À principio, eu só conseguia distinguir por entre a gola da farda, um cordão preto. Nada mais. Nossa distância afetiva, que implicava em distância física, não me deixava ver mais nada. Mas esse fio preto dentro de sua blusa, misturada aos seus pêlos e, principalmente, perto do seu coração despertava em mim uma curiosidade incomum. O cabelo preto, os olhos pretos, pequenos e inquietos como quem anseia experimentar o mundo, o fio do cordão e a linha tênue entre mim e ele
Sentavámos juntos na mesma fila da sala de aula. Eu nao frente, ele atrás. Não sabemos, mas às vezes essa linha tão sutil entre o eu e o outro, entre o interesse e a indiferença, entre o amor e a amizade, só precisa de um simples passo para se desfazer. E essa linha de fato se desfaria à medida que nos aproximávamos.
Dia a dia a curiosidade se aguçava. Trocávamos sorrisos fugazes, olhares fugidios, procuras indecisas, palavras entrecortadas por silêncio contrangedor. Olhos pretos. Pequenos. 

Certa dose de uma malícia inocente. A curiosidade exacerbava a vontade de saber, de ir além daquela blusa, de encurtar nossa distância, de atravessar aquela sala, de descobri o olhar que se escondia por detrás daqueles óculos, de desvendar aquele mistério que me perturbava. Eu só queria saber que pingente estava pendurado na ponta daquele cordão. Só isso.
Foi-se chegando. Cada toque, uma nova sensação. Cada sorriso, uma esperança. Eu corria, eu chegava cedo. Eu passei a sentar atrás. Nossa! Aí eu dei muita bandeira. Eu fiz amizade com seus amigos. Eu queria vê-lo. E o cordão agora, era apenas uma desculpa. Eu já quase que podia distinguir aquele volume à altura do peito. Ele brincava, se esquivava, punha e tirava os óculos, conferia a carteira, me olhava como quem promete algo, mas não garante se vai cumprir. Tocava no objeto, puxava novamente o cordão para dentro da blusa. O olho era pequeno e ele fechava mais quando ria. Minha avó sempre dizia: "tenha medo de homem com olho pequeno!" Eu ria, eu me divertia, eu me envolvia cada vez mais nos laços daquele cordão. Parecia não ter fim a minha espera. Quase que se formava na minha mente relutante o formato daquele objeto, sempre tão perto do coração dele. Eu me consumia no meu processo de negação...Eu dizia para os outros: "É apenas um amigo" E para mim mesma: "É apenas uma curiosidade" Nada mais. Nos meus pedidos, eu pedia muitas coisas, mas temia pedir uma: o amor. Os pedidos dele, que talvez estivessem ligados àquele cordão sempre tão bem protegido, eu não sei, seus receios detectados por seus movimentos inquietos, também não.
Distraído, um dia, ele tirou o cordão de dentro da camisa e abaixou a cabeça como quem conversa intimamente consigo mesmo. O objeto era escuro, envelhecido, de madeira resistente. Uma cruz. Será que esse símbolo sempre carregará o peso de estar ligado à dor? A história que estava se anunciando prometia romper com isso, acreditava eu. A cruz casando com uma barba rala que anunciava timidamente entre umas poucas espinhas davam um aspecto muito bonito àquele rosto em formato romano.
Minha ansiedade aumentava, nossas afinidades me estimulavam. Eram tantas coisas em comum. Queríamos passar para o mesmo curso no vestibular, tínhamos o mesmo signo, erámos bons e solicitados pelos amigos no colégio. Nos entendíamos nas brincadeiras. Ríamos juntos, Até planejávamos trabalhar juntos ja que a profissão seria a mesma. O sorriso, antes fulgás, tornara-se largo e franco, o olhar fugidio agora encarava . O silêncio entre nós nao mais existia. O que antes era dúvida, transformara-se em certeza. Eu queria ir além, além de uma simples curiosidade. O motivo dessa curiosidade não mais existia. Nos meus pedidos agora, havia seu nome. Seu nome tornara-se doce, tão doce na minha boca, mas não sabia eu que ele também estava se tornando doce na boca de outra. E aquele crucifixo, que foi sendo descoberto com meus sentimentos jamais chegaria perto do meu coração como chegou do coração dessa outra, e eu constatei, amargamente, que a cruz continuaria carregando o estigma de alguma dor.







5 comentários:

Icaro Rabelo disse...

Isso deveria ser lotado de comentários. Você, como mulher, é sensivel, e disso todos nós já sabíamos; o que não sabíamos era que sua sensibilidade chegasse acertar o coração de todos. Muito lindo sua visão de inicio de paixão. Despretensiosa, totalmente. Mostra um ínico, um desenvolvimento, e nos deixa com o mesmo fim de antes.
Enfim ... Eu gostei, muito. De verdade, eu gostei, muito mesmo. E eu acho que vc tem talento, eu não estou falando por falar; pois isso é sincero.
Gostei mesmo, já disse isso ?

Bruna Girão disse...

maravilhoso. adoro este seu conto desde que lemos na aula de Literatura cearense... (já faz taaaanto tempo...)

parabéns amiga!

Escola Paulo Benevides disse...

Nooossa, e pensar que quando eu li, revivi muuuitos momentos!Lembro-me perfeitamente dessa época...e era exatamente assim, desse jeito, com essa descrição! Você colocou no papel tudo o que a gente sentia nakele momento...e isso é único!
Continue assim amiga!Fazendo a gente viajar com tuas leituras!!

("é tao estranhooo..os bons morrem jovens, assim parece ser, quando me lembro de vc, que acabou indo emboraaa, cedo demais...")

Yárita disse...

Amiga eu estou sem palavras pra falar desse conto maravilhoso!É algo que vai tomando conta da gente e nos faz ter contato com o mais intimo do ser!Sou super tua fã sabia?

Yárita disse...

Sem palavras pra dizer o quanto esse conto maravilhoso me tocou!Serio!É lindo!Ele faz a gente entrar em contato com o mais intimo do nosso ser!ADOREI!Simplismente fantástico!Sua fã eterna!